ZONA DA MORTE
- ALENDASZ
- 10 de mai. de 2021
- 16 min de leitura
Atualizado: 30 de jul. de 2021
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Zona da Morte I
Na parte de dentro, o som e a fúria eram vitaminadas pela necessidade de sobreviver. Zaia só poderia não se curvar ao magma de ódio se conseguisse criar núcleos de energias em sua área. Havia um livro na parte de cima do armário, ninguém havia chegado ainda, o trabalho por aqui não se distanciou, só isolou ainda mais as chances de melhoras.
Aprumou o café. O cheiro de queimado já era esperado, a panela tava velha, era daquelas que restaram de quando ainda tinha no fundo o fogão à lenha. Aah vovó, tricotava tantas histórias que tédio nenhum fazia frente.
O tédio ali era como uma emboscada matriz dos “difíceis ganhos fáceis”, das cicatrizes mais gratuitas e profundas. O tédio como um crime que explode os eixos penais e observa em jovens pessoas pretas um alvo erguido à luz de qualquer história comprometida com os mortos e bem vigilante com os vivos. Ainda é ensurdecedor em qualquer canto que em “cada camburão tem um pouco de navio negreiro”, vale dizer que cada porção de tédio, tem jovens pessoas pretas encarceradas, em rasas covas, em campos minados calçados de paralelepípedos, em zonas da morte, tipo morto-vivo, sabe?
Ela sabia que lá na zona as áreas vinham ganhando uma intensidade fúnebre nos ritos do cotidiano. Haviam inúmeras dimensões tingidas de felicidades, de construções menos tensas, de projeções mais concretas, porém todas elas contornadas pelo medo, pelo risco. Zaia só não sabia que a carga poética que a zona pulsava era entranhada em fundos poços de sangue. Deixou de pensar nisso, abandonou a pergunta com o avançar do frio na porta, entrou, notou que precisava se adiantar na compra dos pães.
Zaia saiu pra captura, horários abreviados, o toque continuava querer nos recolher, nos encolher, nos humilhar. Tinha muita vala, viela e a emoção do momento despertou a SUSPEIÇÃO, bora, chega pra lá, deita, vai, é de rotina. Na mesma via e momento um carro passou com um som em média temperatura tocando Negro Drama, não, não era coincidência, era mais uma pessoa preta parada, a mulher que vinha no carro prata foi encostada de imediato. O fuzil cobriu o rosto dela, parecia que os fardas rondespianos não queriam fazer nada menos que o drama narrado por Brown, tava ali, “500 anos de Brasil e nada mudou”. Zaia, ainda deitada, não sabia de fato que desgraça estava acontecendo, o cotidiano tinha seus cavalos de pau. A mulher ao lado se encontrou no olhar de Zaia, frisaram em instantes um laço de medo e confiança. Zaia só não esperava a bicuda do coturno em seguida: “-bora desgraça tá olhando o que?” Apagou.
…
As cores das sirenes assombravam a chegada da noite naquela cartografia mista de terra e asfalto. Várias e diferentes casas se encontravam na formação daquelas ruas e becos.
…
Numa delas, Ama e Zika se entregavam a tal ponto da cama em instantes ficar desfeita, a intensidade daqueles beijos deixava o ar como um pavio, só mais um movimento e o fogo pegaria. As roupas deitadas ao chão davam o tom dos corpos pretos largados na brasa do prazer. Corpos pretos se importam. Parecia a primeira, mas só parecia, não se rendiam em contagens, apenas se prendiam à voltagem de gozarem da sobrevivência. Na Zona da Morte o amor é uma arma que não sabemos ainda como não manusear contra nós. Os estalos de gemidos denunciavam o valor profundo daquela batida, soavam como dinamites de desejos com pinos arrancados com a pele fina da boca. O ar tava tomado, a energia exalava da excitação no contato da língua com todo o corpo, um mundo na ponta da língua, uma navegação em águas delirantes, daí ela explodia em prazer com as mãos cravadas naquele cabelo que ele ousava em não cuidar, sua cintura estremecia em comandos que ele obedecia salientemente.
Ao lado de fora, a estrada de chão desenhava o caminho onde já apontavam as inúmeras viaturas, tinham várias crianças se escondendo, ali todos sabiam dos vários níveis de destruição trazidos por aquelas presenças. Alguns já não eram mais crianças, mas ainda apresentavam as feridas dos sonhos. Na Zona da Morte diversas crianças eram feridas pelo sonho. No quarto, as carícias estavam ainda nuas, porém mais silenciosas, parecendo sentir a ponta do mundo em cada curva. No suor espalhado ao corpo, o brilho dela se apresentava como uma força negra muito antiga, capaz de ensinar o mundo a existir em eixos mais intensos e menos tensos, mais mundos.
Ela acendia mais um beijo com suas pernas presas entre ele, quando percebeu o barulho de portas várias se abrindo. Não se desconectou, porém o beijo foi ganhando um ritmo mais calmo, mais mordido, até soar o primeiro grito: “se entreguem”. Ele apertou ela ao peito. O grito veio mais forte: “SE ENTREGUEM!”. Com os corpos ainda algemados no prazer, se entregaram, negociaram mais beijos e a permanência das roupas no chão. Sussurros e afagos, mordidas, as unhas fincavam toda verdade daquilo, os gritos lá foram aumentaram, e cá, se entregavam em partes. A parte que não queria acreditar era que aquilo era só um conto, decidiram não negociar essa.
Zona da Morte II
Aquelas lembranças queimavam-lhe o corpo. Tentou fechar os olhos, equilibrar o que vinha nos pensamentos. “Por que porra estou pensando nisso? E se aqueles desgraçados conseguissem o que queriam? Fatalmente eu estava fudida agora”. Tentou novamente concentrar na roupa que precisava escolher, mas a cena se repetia incansavelmente na sua cabeça, os arrepios se derramavam em sua pele, já não sabia o que fazer pra se livrar. Há dias essas lembranças lhe tomavam, Ihe buliam, Ihe paralisavam, eram filhas do medo.
“Está acontecendo alguma coisa? Posso lhe ajudar” questionou uma das lojistas. Eyolo não conseguiu gerar uma resposta, seus olhos perderam-se no tom amarelo-ouro do tecido que se espalhava na vitrine. Ouvia ruidos lá fora, barulhos de não isolamento, cantigas vendendo mentiras de eleição, mas ver, só conseguia o que as lembranças traziam, o medo. Queria desabar ali, se apagar com aquelas lembranças. Desde os 19 anos, Ama Eyolo começou a perceber que aquelas lhe deixavam desnorteada. Não sabia, mesmo depois de anos, lidar com aquelas imagens. “Você quer ajuda?” A lojista perguntou de novo tocando no braço de Eyolo.
Sem entender, a moça da loja viu repentinamente o corpo cor de noite de Eyolo se retorcer, ela levava a mão intensamente na cintura e dizia inúmeras palavras não compreensíveis no português. Uma senhora que vendia na calçada, já assistia a cena a alguns minutos, correu e se aproximou, pediu a água a lojista e que momentaneamente fosse retirado aquele tecido amarelo dali, também começou a desferir palavras que não se entendiam. A cena fez lotar a frente da loja. A senhora já tinha retirado a máscara de Ama, conseguindo escutar baixinho dela “é preciso esquecer de lembrar pra poder lembrar de esquecer”...
Ao chegar à sua casa, rua da morada, conjunto dos viventes, Ama percebeu que na outra rua estava acontecendo algo. Aquelas sirenes não traziam boas visões. Pensou em entrar, rogar aos seus orixás e tentar se esforçar na compreensão do porquê ficara daquele jeito na loja. Deixando a sandália ao lado do tapete, pensava no acontecido. Ensaboava as mãos quando recordou/se de uma vela, precisava rogar aquelas palavras, deitar aqueles pensamentos.
…
Morte, por que se aproximai tanto? Por que levaste meus manos e não os inimigos e os brancos? Por que não me levaste e me livrai dessa sua constância? Oh morte, intercedei agora e na hora da tua presença, fazendo com que os filhos dos comerciantes também tenham seu sangue derramado. Bebei do sorriso que engoda os políticos dessa cidade. Amem a toda rebeldia que não se curva a internet, rogai. Oh morte, por que se aproximai tanto? Por que tuas doenças insistem em nos ocupar racialmente sem prescrição médica? Vai morte, faz do teu silêncio o grito retumbante, faz em nome dos mortos que eu carrego. Faz, faz em memória das mães, das filhas, dos filhos e das covas rasas que ainda terei de afastar, em nome do campo minado, oooh morte, rogai.
…
Acendeu a manhã com duas doses quentes daquelas memórias amargas. Pareciam queimar tudo por dentro. Desgraça, pensou, os delírios também foram acesos, batiam a mil aquelas mesmas ideias lotadas de rancores e solidão. As doses eram uma espécie de passaporte, destravava toda aquela cena fúnebre de reconhecimento do seu mano. Nenhuma lembrança boa por perto pra tirar aquele gosto envelhecido do corpo. Já tinha anos naquela neura.
- “Ein seu bixo . Tu, tu tá ligado . Que, que essas paradas não vão ficar assim não.. Oxe, que nada, än, vai ser aquilo mesmo, se aparecerem, vem, rebanho de e.” e daí não parava mais de falar, em instantes se tornava o locutor de todo caos por ele previsto na pequena cidade...
“- Ein seu bixo, tão pensando, run, aiai.” Os gestos aceleravam num frenesi de quem parecia ter perdido parte de si. E desatou a chorar. Doses e mais doses amargas calibrando o que restava daquele menino habilidoso em fazer geral “rir”.
- “Ein seu bixo. Ein, ein. Eu, pivet, alma boa, na pureza, carregando um fardo desse seu bixo, pode não porra. Esse bagulho de abandono faz a gente contar com nos mesmos e ai extrala seu bixo, tenho mais nada perder, eu quero é que venha, que porra de nada”.
Agachado onde estava decidiu por mais uma dose, já queria fechar a manhã, se pudesse até o mundo. Parou, quando parecia pensar junto ao escorrer da saudade nos olhos, deu um grito: a vida é loka, né? Mas minha passagem será cara e longa nessa porra. E batia no peito esperando que os delírios saíssem ao engolir mais uma dose.
ZONA DA MORTE III

É, decidiu sair. Desativar todas as recomendações e sair. Sair sem aquele fardo que a deixava sempre disposta a responder aos ataques nada sutis que se espalhavam na rua, sair sem o medo de não corresponder às imagens de controle disponibilizadas em sua cidade e pelos seus conhecidos. Sair, o verbo que fez Afeni bagunçar todo o conjunto de imagens danosas que fascinavam aqueles que a queriam por perto. Desde então saiu daquele circuito de sentimentos que lhe permitia um sorriso no rosto, mas lhe afundava por dentro. Nem foi fácil, mas já estava lá fora quando notou o seu interior como algo que poderia ser seu, sem as algemas do egoísmo. Até então sabia das mentiras do ame-se, e agora podia provar a delícia e o desafio de conhecer seu interior onde estavam as pessoas que ela amava. Mas ainda assim, saiu.
Saiu daquelas poesias e músicas de lembranças, saiu e não deixou nada vazio, nada fora do lugar. Se arrumou para seu olhar, e foi em frente, ainda tinha que passar por aquela empresa de redes sociais que exigiam toda hora contato, contrato, contágio em nome de uma beleza cada vez mais passageira e mercantil. Por isso saiu às pressas, mesmo sabendo que tinha que ficar, saiu sem dar satisfação, é, saiu sem nada disso, sem medo e sem dedo pra botar na cara de ninguém. Saiu daquele si que nunca foi seu.
Andava a passos largos quando saiu dessas românticas investidas de um direct nada direto. Queria sair daquelas visualizações que em nada lhe enxergavam. Em seguida, já em meio à calçada do peito, viu de frente aquela voz da sua avó, que bem dizia saia sem sair de si, saia sem se desistir. Com essas palavras libertas em sua caminhada rumo à saída de um tempo de entrega, Afeni, com suas tranças esvoaçando pela amarronzada curva do seu pescoço, decidiu sair daquela escrita e ir até uma dose de vinho que tinha restado da noite anterior. Daí atentou-se para o valor das pequenas coisas, das saídas em pequenas doses. Após adocicar a boca, ela foi até aquela literatura que lhe fazia sair e esquecer aquele contágio de saudade. Aquele contágio de prisão. Aquela vontade de sair.
…
Desceu. Eu sou Uimbe. Não estou saindo, não posso ficar presa nessa tela. Não sou eu quem escrevo, só me deixei ser escrita pra poder passar por aqui, dá um salve a você. Eu não quero falar como está a minha área em relação ao vírus, mas estamos sobrevivendo. Vovó segue costurando, fazendo pequenos mundos com panos e o quintal parece mais arejado, apenas parece.
A televisão aqui foi abandonada, nossas notícias agora são antigas, passageiras, verdadeiras?! O comunicador oficial da casa passou a ser o rádio, sem pilha ele tem fina sintonia com nosso dia-dia. Agora tinha também os clássicos de dona Geró, a vizinha daqui, botou seus vinis no som novamente, parece que ela descobriu que não existe só arrocha nesse mundo aqui do Bocarão. A última semana e suas tensões por aqui, run, viaturas e sumiços até agora mal explicados.
Nossa rua, Bocarão, era a mais antiga da cidade, mas já sabemos que o beco da Gota tinha dois anos a mais. As ruas e os becos têm idades, sabia? Às vezes são nascidos antes da cidade. Mas só parabenizam a cidade e se esquecem dos becos. Meu avô que me contou essa viagem. E aí eu ficava pensando sobre as histórias das ruas, suas passageiras e seus passageiros, pensava sobre as músicas que já tinham sido cantadas por lá, as fugas por ali passadas, os pegas, amassos, embalos e as brincadeiras. Agora estão todas vazias, chamadas de perigosas. A do Bocarão chamam assim, a mais perigosa da cidade. Mas depois da ideia do meu avô, sei que não é, a nossa rua e os becos têm histórias.
Meu avô está cheio de notas hoje, todas elas do violão que ele não mais larga. Começava a tocar cedinho, geral já se deslocava para os seus trabalhos àquele horário, aqui quase nada parou, quase nada. Vovó não quer mais internet, essa coisa da presença sem voz, da voz sem presença chateia ela. Ela quem me disse, “Uimbe, tu não acha que querem nos matar com essa coisa de presença que não é presente? Daqui uns tempos saudade nenhuma vai sentir mais falta. Já nem temos direito a ela mais”. Pois é vovó, tá tudo meio assim, sem jeito. Mas a gente vai saber lidar. Eu mesma me deixo até ser escrita, só pra poder falar com quem passa por aqui. A senhora sabe que agora querem fazer tudo na tela né? Tudo pra apagar a gente.
Zona da Morte IV

Aqui os parceiros seguem sendo queimados. Nem é inquisição, mas há perseguição, delação, tortura e matança. Tudo assim. Queimados. Furos e um rompimento com quem fica. Soyê abusava nas metáforas, e isso irritava Mali.
- Porra pivet, merda de nada, vai ficar nessa viagem aí é, já tá ligado que a fita é assim.
- Assim como Mali? Morrendo pra viver pra morrer, é? De qualquer ângulo você vai enxergar a nossa morte, a gente vence, mas morre bem mais. Aí vão te dizer que tão cansados de ouvir, já sabem que somos mortos e pega nada, né? Você acredita assim? A fita é assim e continuará?
- Soyê, escuta só. Não estou negando porra nenhuma dessas ideias, cê sabe. Meu papo é que se ficarmos só em cima disso, atrai meu parceiro. Vamos tentar apagar essas queimadas de pessoas pretas como nós, começando por sair daqui, por exemplo. Vamos sartar fora daqui, já recitamos, não vamos ficar de lombra aqui viajando nessas ideias que eu nem sei mais que porra eu tava falando.
-Aaah Mali se liga. Baratino do carai, nunca você quer assumir uma responsa com essa onda. Depois da chave em nossas mentes pivet, precisamos não se entregar, em momento algum, nem a dor e nem as ideias de que vai ficar tudo bem, porque não vai.
Saíram fora. Estavam no teatro da queimada, cemitério do município. Cheio de corpos e lá eles iam todo dia recitar um poema para os parceiros. Cantavam um rap, regava umas lágrimas e saiam pra luta. Assim seria naquele dia, mas na saída foram emboscados pela milícia do prefeito. Mali e Soyê partiram no soar do primeiro disparo e de repente, Soyê acorda em meio à noite. Suspirando forte, suado e ofegando. Pesadelo desgraçado pensou. Levantou do bicama pra bicar uma água. Ficou pensando. Viagem.
…
A cada quebra-molas era um solavanco desgraçado. As pulseiras nada de ostentação só castigavam mais e mais. Eles pareciam não querer derramar nosso sangue, só fazê-lo parar de circular, notei, são habilidosos nas várias formas de matar. As mãos iam perdendo os movimentos e um longo exercício de sequestro começava. A escuridão onde estávamos só acionava a memória de um tumbeiro. Memórias voluntárias e involuntárias se cruzavam na tentativa de traçar rapidamente algo que pudesse badalar nossa localização, foda que nem sabíamos aonde íamos. Tava ali, duas longas trajetórias na mão de duas fardas, um triz e o bagulho virou. Reparando a “impotência” de quem assistiu a tudo, lembrei: a gente importa porra nenhuma.
Primeira parada. Nossos olhos palmilhando todo o fundo daquela jaula que metáfora nenhuma da conta, buscávamos alguém que pudesse espalhar que ali estávamos, mas nada. Saíram de novo, e as pulseiras cumpriam seu papel. Nunca odiamos tanto os quebra-molas, ou melhor, os condutores e aquele navio negreiro urbano. Segunda parada, em meio ao mato e num reino de ameaças, um repertório verbal de torturas e intimidações. Alguém na estrada notou o tumbeiro, recuaram. Seguiram, pulseiras apertam e os solavancos começavam a deixar seus registros corporais. Outro breu e mais uma parada. Já sabiam (parentes) que estávamos amarrados ali dentro, e por isso essa foi rápida.
Sem saber qual fim teríamos e as mãos já inchando com aquelas pulseiras, captamos que na frente de um fuzil e de uma quadrada, o que importa é não deixar a mente fora de controle, porque o corpo eles já tinham dominado. Foda, se as palavras suportassem a real de um sequestro, ruun, essa contação teria mais tortura, mas eu percebia que o sangue já não circulava bem, fiquei quieto pra não apertar ainda mais a pulseira. Dos salgados que íamos buscar a uns três pontos de torturas na cidade, percebemos as várias técnicas de nos matar, a mais silenciosa e duradoura é a que nos deixa vivos. Vai vendo.
…
A aglomeração só era a dos desejos transitando na mente. Na tela do outro lado também se aglomeravam, eram com vários suspiros destravados que buscavam se manter, estavam nessa há uns tempos. Com escassas palavras, sabiam que não iriam longe assim, a base de suspiro, não em cenários de crises respiratórias. Até cansaram durante uns dias, as mensagens perdiam fôlego, será que de tanto suspiros? Não sabia, nem sabia onde iria dar, o país não deixava qualquer greta de transparência, o novo normal já estava velho de tanta espera para entrar em cena. Os sinais de flexibilização não os animavam, a cada tal nova fase, ficavam mais fúnebre os próximos dias.
O celular vibrou, identificou que não era mensagem, apenas um lembrete sobre um possível encontro de vídeo aquela noite. Suspirou. Em seguida outra vibração, alguém o ligava, sem sacar direito quem, foi recostando o celular no rosto, as palavras mecanicamente saíram sem muita carne, “ei, fecha os olhos, se estou na sua cabeça, não irá demorar eu estar em seus braços, visão aí”. O tun, tun, tun do desligar da chamada carregou o momento de suspense, não reparou o número, só bebericou o café pouco quente e fechou os olhos a pensar.
Zona da Morte V
Os resíduos das lágrimas ainda apontavam uma pele encharcada. Naquela noite o vento fazia as árvores entrarem em dança, como que num ritual de Oyá. A brisa erguia um frio com cheiro de café e livro aberto. Batuques ressoavam das gotas chuvosas no telhado, e pelas páginas, as negras palavras arrastavam sentidos de lutas e autodefinição, escreviam o que as vidas daquele lugar marcam no cotidiano de labuta. A pele escura se derramava num oceano salgado de várias toneladas, e por isso aqueles resíduos lacrimais ao amanhecer.
De início não entendia, mas em algum lugar Eyolo tinha visto um desenho do Atlântico Negro, daí sacou que os olhos do seu povo eram como afluentes do oceano diaspórico, precisavam de passagem. Sugou todo aquele pensamento e virou a página, a emancipação negra era uma travessia que lembrava bem aquele desenho, que tornavam valiosos aqueles resíduos.
…
-Trouxe um saco cheio de feridas, relógios, pulseiras, gravador. Viu lá no alto, a onda de horror? Vai não, repara que lá fora a gente corre, corre e nunca chega à frente. As calçadas insistem em nos ter, solo quente, terra batida. Qual a textura da nossa dor? Se forem tantas, então colé que só a nossa serve pra drenar o sofrimento do mundo? Meu guri, me diz em qual saco guardaram nossa alegria? Não vá.
O olhar tombava em piscadas pesadas, as lágrimas perfuraram o bloqueio e despejaram alívio pelo rosto. Sentou, o saco com os objetos foi largado ao chão. O relógio que conseguira não servia pro seu tempo. Nem sabia de onde poderia tirar cicatrizes para aquelas feridas da sacola, não ia. Limpou os olhos, pegou uma pulseira e viu reluzir o brilho da desigualdade com todo seu reflexo de racismo. Decidiu usar a pulseira, com um taco de arame que estava ao pé do caixote, apertou bem cada volta, agora não escapava, o dia estava amarrado e ele não ia. Não ia ser saco para os projetos de matabilidade do mundo, não ia gravar mais a dor.
…
Recostou o livro em cima do peito. Não sabia o que balançava ali. O livro, o peito ou o vento que passava leve fazendo seus olhos fecharem. Sabia sonhar mais do que viver, mas não ligou. Deixou-se fechado, vento passava, e algo balançava ali, entre o peito e o livro. O fechamento do olhar o levou. Sem se abrir, estava em meio à festa, o tédio bailava, assim como o ódio dominava o paredão que estava conectado ali, ali no balanço. A solidão era a estampa das roupas de modo geral. Os olhos fechados seguiam, beliscou uma dose de vento e se aproximou do paredão.
Daí, tiros, tiros, as roupas deitavam, os corpos se derramavam e tiros, tiros, tiros. Um olhou abriu, sentiu o molhar que desabava na face. O outro olho, ao escapar, tiro, ao abrir, também sentiu toda nuvem de água drenando a pele. Assustou. Levantou rápido. O livro caiu, por um instante pensou que era chuva, e era, mas nos olhos. Chorava. Algo seguia a balançar, os olhos navegavam nas lágrimas.
…
- vá se puma porra, suma daqui com a desgraça desse sentimento.
- mas...
- mas nem mais merda de nada Nagô, vaze, não quero conta com baguizinho de sentir nada, sacou? Sem tempo, vá, vá, se pique, suma sua disgrama.
- tá, mas saiba que...
- saiba o que? Saiba eu rumar esse coração na tua cara misera, ai tu vai ver, sai porra, sai, oushe, sem ideia, namoral.
- sim, me deixa só lhe dizer o que passa aí dentro, talvez.
- Ô sua desgraça, quer saber o que passa aqui dentro né, vem com tua insistência do cão, vem que vou te mostrar agora. Pegou a faca que beirava o lastro da pia.
- Aqui o que passa dentro de mim, cortes, cortes e cortes abruptos, agora sua desgraça vem cá pra eu fazer passar dentro de tu também, vem. Saia daqui de uma vez por todas porra.
Tentou se afastar. Reparou que o temperamento estava a mais do que deveria, não podia ficar daquela forma. Olhou de novo no espelho. Sentia o cabelo vivo, o sorriso era o mesmo. Lá fora era só sol. Cá dentro, o que tem? O que era?
…
Encarava o espelho tentando ver o mundo ao fundo, parecia querer entender os reflexos da alma no corpo, mas não enxergava nada além das manchas. Não se reconhecia ou não se conhecia? Não soube se dizer. O suor do tempo escorria na sua pele e era mantido pelo esforço que fazia para se concentrar no espelho. Ligou a torneira, água nenhuma. Voltou ao fogão e as lenhas ainda estralando. De onde tiraria água para cozinhar aquela fome?
Pensou que xingar não resolveria, mas xingou. Suspirou tentando jogar a fome pra fora.
Voltou ao banheiro, pensamento ainda truncado, sem saber como se livrar de si e daquilo que o espelho indicava serem manchas de uma vida-morta. Olhou a torneira e o vazio dela era o mesmo lá de fora. Só saía o ar quente e um barulho surdo. Saiu novamente. No fogão, a panela vazia esperava a água que não tinha. No corpo, o estômago esperava a comida que não chegaria. Decidiu não esperar mais pela falta e começou riscar um verso no espelho que não lhe mostrava. Tentou riscar a vida que não tinha. Então começou pensando um título, Sonhadores na Zona da Morte.
O contos ZONA DA MORTE I, II, III, IV e V são produtos integrados na produção do disco Sonhadores nas Zonas da Morte (a.lendasz). Ouça o disco aqui
Sobre o Autor:

AlendaSz se firmou como A Lenda do Rap no interior baiano, mais especificamente nas áreas zero-sete-cinco (075). A experiência no Hip-Hop cantada, lida e vivenciada por ele se confunde com sua própria experiência de vida. A visão de como o Crime na Cor está estabelecido e organizado no dia-a-dia de cada realidade deixa estarrar a sua sensibilidade e entendimento sobre a vida periférica do interior baiano. Um dos tantos Sonhadores na Zona da Morte espalhados pelos interiores do Brasil, Alendasz é um trabalhador da música e da educação, professor e cantor, que percebeu que é Nú Varejo onde se aplica a política genocida sobre os corpos negros desse país.
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