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SUPREMACIA

  • Foto do escritor: Samuel
    Samuel
  • 21 de out. de 2021
  • 8 min de leitura

Atualizado: 19 de nov. de 2022

Rodrigo nasceu e se criou no interior da Bahia. E assim como todo menino preto morador da periferia, tinha as ruas como extensão do quintal de casa.


Vivia o dia inteiro traquinando e desbravando as ruas, tinha dias que nem para escola ia. Sua mãe gritava: “ôoo Rodriiigooo, vem tomar banho, minino, tu vai se atrasar! ”. Por vezes, Rodrigo como menino esperto que era, fingia não escutar os ensurdecedores gritos de sua mãe. Afinal, pra quê ir para escola? Não era nada interessante. A única coisa boa era a merenda. A rua chamava bem mais atenção.


Era nas ruas que Rodrigo sonhava com o futuro enquanto visitava as histórias do passado dos homens mais velhos do seu bairro, que comentavam alegremente sobre suas longas vivências. Era nas ruas que Rodrigo aprendia a viver e via os homens não tão novos quanto ele e nem tão velhos ao ponto de lhe contar histórias, desfilando com seus kits novos. Eram esses mesmos homens que em época, como o dia das crianças, davam brinquedos para Rodrigo e toda a molecada do bairro.


Porém, para sua infelicidade, era também nas ruas que, por vezes, o menino encontrava sua mãe cambaleando e caindo pelos cantos depois de beber como se não houvesse amanhã. Lurdinha, a mãe de Rodrigo, começou a beber depois que seu filho mais velho desapareceu e nunca mais foi visto. Geral sabe que foi a polícia que sumiu com o menino, e que provavelmente deve estar em uma dessas incontáveis covas rasas e clandestinas que há neste cruel e sangrento território baiano. Lurdinha, que teve seu filho desaparecido, hoje também se perde nos copos de cachaça. Rodrigo era bem mais novo quando Carlos desapareceu, por isso não lembra direito, nem sequer, do rosto do irmão. E assim Rodrigo ia vivendo, fazendo das ruas a sua casa.


Rodrigo hoje tem 21 anos. Quando ainda tinha 17, nas andanças pelas ruas-labirintos, de longe, ouviu um barulho de várias vozes, choros, sirene de ambulância e viu uma multidão abrindo espaço para os enfermeiros chegarem até o corpo que estava no centro. Quando se aproximou do local, viu o corpo de sua mãe, molinho feito uma boneca de pano preta sendo colocado na maca. Naquele momento, Rodrigo não soube ao certo quais sentimentos que lhe invadiam, mas, com certeza, o medo era o maior deles. Não conhecia o pai, o irmão já não tinha mais, e agora sem mãe... Será que agora, de uma vez por todas, a rua irá virar sua casa? Perguntas e sentimentos pareciam caco de vidro, cortavam o menino por dentro.



Desde esse dia, Rodrigo passou a viver com Maria, uma vizinha, que era velha amiga de sua mãe, e agora, era sua mãe também. Maria trabalha nessas ditas casas de família. Lá Maria faz tudo: lava, passa, cozinha e tudo mais o mandem fazer. Além de ainda ter sua própria casa e filhos pra cuidar.


Rodrigo foi com Maria para buscar um móvel que Cármen, sua patroa iria jogar fora, e Maria pediu pra levar pra casa. Foi nesse dia que Rodrigo conheceu Luiza. Luiza, que assim como a maioria de suas amigas, todos os finais de semana usavam o dinheiro que ganhavam dos pais para sujar o nariz com farinha. E foi a partir desse dia, que Rodrigo, numa tentativa de desembolar uma moeda a mais, começou a fazer o corre do raio para Luiza. Toda sexta à noite, dia em que os pais de Luiza chegavam tarde do trabalho, Rodrigo ia lá fazer sua moeda e levar uma perigosa alegria pra vida de mais uma menina branca.


Toda vez que atravessava esses dois mundos- o da guerra que vivia na periferia, e o da paz do território do inimigos- pensava estar mais em perigo ainda. O que os gambé iriam pensar imediatamente se vissem alguém do seu padrão específico perambulando pelas ruas? Será que o matariam ali mesmo? O levariam preso? Ou sumiriam com ele assim como sumiram com seu irmão? As perguntas sem respostas insistiam em grudar na cabeça de Rodrigo por todos os segundos em que seu corpo preto estava fora de casa. Em casa, sabia como sumir nas ruas-labirintos, porque, afinal, foi nelas que ele se criou, mas fora delas, o perigo era latente.


Uma vez, nessas idas de fazer o corre nú varejo, Rodrigo sentiu que estava sendo seguido. Hora ou outra ele olhava para trás, até que uma vez, por alguns segundos, conseguiu enxergar um homem de pele tão negrume quanto a sua. Mas como se enxergou no corpo daquele homem, não deu muita importância. Porém isso não fez ele parar de olhar para trás. Ora sentia o cara próximo como quem o capturaria, ora sentia ele longe como quem observava, mas não se importou.


Rodrigo se viu preso em um ciclo vicioso de levar o raio para Luiza e receber em troca, além da moeda, o corpo pálido dela. Ela contava para todas as amigas como achava lindo o corpo de Rodrigo e de como seu beijo era dahora. Ele, às vezes, conseguia mensurar o perigo que era adentrar aquele corpo, colecionou mais essa zona de perigo e focou no prazer que aquele corpo tão alvo lhe proporcionava. Rodrigo e Luiza, vez ou outra, varavam a noite delirando de prazer, uma intensa e grande mistura de raio, fumaça e gozo... Rodrigo eternizava as horas que passava com Luiza, aqueles momentos o faziam esquecer da guerra entre seus mundos, naquelas horas, eles estavam buscando uma frágil, limitada e enganosa conexão.


Foi numa dessas profundas noites de prazer, que, não satisfeitos com as incontáveis fileiras de raio, Rodrigo decidiu ir até em casa fazer o corre de mais, pelo menos uns dois pinos. Mais cedo, Rodrigo viu aquele mesmo homem que o acompanhava há alguns dias. E lá ia Rodrigo, apressado em atravessar os dois mundos de novo.


No caminho até sua casa, ele pensava em dar um basta nessa situação. Ele gostava da moeda que ganhava, dos beijos e gemidos de Luiza, mas algo lhe sussurrava no ouvido que uma hora ele perderia tudo isso. Ele estava disposto a aproveitar aquela noite mais do que nunca, porque já havia decidido acabar com aquilo tudo. A moeda que ele ganhava com Luiza e suas amigas ajudava nas contas no final do mês, mas ele daria um jeito de desenrolar outros corres.


Rodrigo chegou em casa apressado para pegar os pinos. Quando ia saindo, escutou a voz de Maria o mandando tomar cuidado e desejando que Xangô lhe protegesse. Ele agradeceu, beijou a conta que estava em seu pescoço e seguiu caminhando afobado. Ia descendo a ladeira com os pés firmes no chão e a cabeça flutuando, e por uma das ruas-labirintos que ele conhecia como a palma das mãos, Rodrigo se vê de frente com o minotauro-viatura.


Naquele momento, naquela hora, naquele lugar, tudo que Rodrigo desejou foi ter a alvura da pele de Luiza, desejou que o negrume de sua pele-alvo se transformasse em fumaça e sumisse dali. A viatura parou, homens desceram, o corpo de Rodrigo estremeceu, paralisou, e em sua mente, só permaneceu a inquietude do pensamento: Xangô meu pai, me proteja! Como vou me sair dessa laranjada? Quem a essa hora, nessa escuridão, há de me ver? Desesperado olhando para baixo em direção a parede, as únicas coisas que Rodrigo conseguia enxergar eram as fardas beges e botas pretas, e desejou, do fundo de sua alma, que mesmo que não soubesse ao certo quem ou quê que era o homem preto que sempre lhe acompanhava, que estivesse ali, com ele, naquela hora. Rodrigo apagou, seu corpo preto foi de encontro ao chão depois de sentir uma porrada na nuca.


O dia amanheceu, era domingo, Maria não ia trabalhar, mas mesmo assim acordou cedo, porque tinha de cuidar da casa. Percebeu que Rodrigo não estava em casa, mas não se importou, no final de semana era costume ele dormir fora. Enquanto ainda passava o café, vozes desesperadas de crianças e batidas fortes soavam do lado de fora de casa. O coração de Maria, mesmo sem saber o que era, estava prestes a saltar pela boca, suas enrugadas mãos pretas tremiam como se estivessem segurando um fio descascado. Do lado de fora, as crianças estavam com olhares que pareciam terem visto a coisa mais assustadora da vida, seguraram as enrugadas mãos de Maria a puxaram ela ladeira abaixo.


De longe, Maria já conseguia ouvir choros, gritos e sineres, fazendo lembrar da cena que Rodrigo lhe contou sobre o dia da morte de Lurdinha. Maria se aproximou, a multidão abriu caminho pra ela passar, e em uma valeta, jogado entre lixo, Maria viu o corpo preto de Rodrigo banhado de vermelho. Viu o corpo daquele, que pra ela, ainda era um guri, era seu filho. Maria ainda não acreditava no que via...


Uma mistura de desespero e culpa tomou conta de seu ser. Ela havia prometido a Lurdinha, que enquanto estivesse viva cuidaria e protegeria Rodrigo como uma leoa que protege seus filhotes, mas ali, na sua frente, estava Rodrigo, com o corpo estraçalhado, quase que irreconhecível, jogado ao lixo.


De casa, Luiza não acreditou na reportagem que viu, mais um traficante morto em operação policial, mas dessa vez foi o Rodrigo. Encontrado em uma valeta, sem roupa, com o corpo todo pipocado, atravessado por inúmeras balas... A última vez que ela havia visto Rodrigo foi durante a madrugada, quando ele saiu pra ir em casa buscar mais raio, mas agora, via ali, nos grupos de WhatsApp, as fotos do corpo de Rodrigo. Chorava pela falta que os beijos de Rodrigo iriam lhe trazer, chorava pela morte do pivete que fazia o corre do seu raio, chorava por culpa. A menina, que Rodrigo antes de morrer, desejou tanto ter a sua pele alva, chorava sua falta.


Na sala de casa, sua mãe assistia enojada a reportagem na televisão: Era Maria, do outro lado da cidade, tirando forças de onde não tinha, junto com sua família e amigos, junto com toda comunidade-quilombo, que, com sangue nos olhos, protestavam pela morte de Rodrigo. Era Maria, ali, com a revolta correndo em suas veias, pondo fogo em pneus, ônibus, fechando a pista. Era Maria, que havia acabado de virar mais uma das várias “kamisa preta”. Mais uma que carregava no peito a tristeza e a raiva de ter seu filho morto pelas mãos brancas e sangrentas do Estado, mas que estava disposta a bater de frente.


O choro de Maria se juntava com a chuva e encharcava a terra, ela gritava junto com o ensurdecedor barulho dos trovões, seguia ali, firme e feroz. Junto com tantas outras mães pretas na rua, sendo observadas pelos urubus da imprensa e pelas fardas beges e botas pretas. Lá estava Maria, entre a benção do fogo e dos trovões, gritando com uma voz que vinha do fundo de sua alma e ecoava por todos os cantos: “Nós não vamos abaixar a cabeça! Nós vamos reagir! Vocês estão nos deixando sem opção. VOCÊS ESTÃO NOS DEIXANDO SEM OPÇÃO!”


22/04/2021

Samuel Costa


Autor: Samuel Costa ( @samuuueeeeeel )

Personagem/Desenho: Mariana Ferreira ( @pretamariferreira )


Arte digital: Alex Barreto ( @muitobaiano )


Ouça a track Maria é Quase da Família da Demotape Supremacia de Aganju (@aganju_dref)



Sobre o autor:

Samuel (@samuuueeeeeel) é um jovem homem preto, escritor e poeta, natural de Nova Itarana-BA, entretanto mora em Feira de Santana-BA, onde estuda Lic. em História. Envolvido com a arte, principalmente da escrita, desde a adolescência, participou de eventos e movimentos literários ainda na escola, onde em 2018 foi premiado em 1° lugar no Projeto TAL (Tempo de Arte Literária) da rede de ensino estadual da Bahia. Samuel acredita na escrita enquanto uma das várias tecnologias de guerra e libertação do povo preto, e é por meio dela, que além de chorar e denunciar no papel as desgraças que o povo preto vive na diáspora, principalmente nas áreas 75, também escreve sobre os sentimentos que atravessam a sua própria vida.


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