Naquele dia acordou tão frenético que, às cinco e pouca da manhã, pareceu ter caído da cama num chão de adrenalina. A coroa dele, rainha solitária de um reino sem grandes proporções geográficas, ainda dormia em um dos quartos do palácio de parede sem reboco e piso de cimento, não de mármore. O outro príncipe, o irmão dele, dormia no mesmo quarto, na outra cama, a uma distância de quarenta ou cinquenta centímetros. Quando acordou, passou alguns segundos sagrados admirando o sono profundo do irmão que gostava mais da noite do que do dia, naquele momento se perguntou que tipos de sonhos ou pesadelos aquele Kiriku crescido estaria tendo no início da manhã de domingo. Preferiu não imaginar a resposta, por que se por força da mais genuína e precisa dedução, acertasse qual sonho ou pesadelo do irmão, estaria invadindo a única privacidade que ele tinha naquele recinto: pensamentos.
O poeta escovou os dentes na pia nos fundos da casa, no pequeno quintal, tão pequeno que nem é quintal, é muito mais um lugar onde cabem as cordas de estender as roupas.
Foi até a cozinha; pôs água para fazer café no fogão velho, mas limpíssimo, como toda mãe dedicada faz questão de manter; voltou para quarto e pegou folhas de papel ofício, onde estavam impressos poemas de diversos poetas. Ele tinha pesquisado os poemas numa lan house, depois de organizar numa sequência pelo nome dos autores, usou uma parte do dinheiro, que ganhou carregando feira, para pagar as impressões.
Enquanto a água ia esquentando, esquentando, esquentando… até chegar no seu ponto de ebulição, o Poeta esquentava os neurônios da sua subjetividade lendo poemas de Solano Trindade. Parecia um domingo comum, mal sabia ele que seu corpo de aço teria a resistência testada mais uma vez antes mesmo de o sol se esconder atrás do horizonte de concreto e laje para dar lugar a noite, onde dizem as más línguas "todos os gatos são pardos."
E lá estava o Poeta perdido num trem de poesia que dizia:
"tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Piiiii"
… quando percebeu que a água já estava saltitando na panela. Levantou; pegou o coador; pôs algumas colheres de açúcar na água saltitante; pôs a medida de pó de café no coador e entrou na reflexão histórica: “Será que escravizados tomavam café?” Não se deteve muito nisso porque água quente não é brinquedo e a panela sem alça diz que é melhor ter atenção dobrada para não sentir na pele a temperatura em que a água tende a evaporar.
Café feito, pegou o saco de pães de sábado, que na segunda seriam pães de anteontem, cortou dois pães, passou margarina, e pouca margarina. Sua Mainha sempre diz "Tem que durar, porque hoje tem, mas amanhã só Deus sabe!"
Enquanto passava margarina no pão, lembrando que "Mainha disse pra não gastar muito que tem que durar a semana toda!" Percebeu uma coisa interessante, largou os pães, e o café esfriando em cima da mesa minúscula da cozinha, correu até o quarto, pegou o caderno velho e a caneta quase seca, começou a escrever:
"Dizem que "Mainha"
é diminutivo de mãe
uma forma dengosa de chamar
Eu acho ignorância sem tamanho
veja bem, meu bem, vou explicar:
Mãe + Rainha = Mainha.
Ficou surpresa?
É dengo sim, mas não diminutivo
É reconhecimento de realeza!"
O Poeta"
Quando voltou ao seu café da manhã, ele estava frio e sua mãe lá estava, passando manteiga no pão para tomar café também.
"Bença a Mainha!" A resposta automática "Deus te abençoe, meu filho!" E ele prossegue: "Acordou tarde hoje, mesmo sendo domingo a Senhora sempre levanta mais cedo!" Eram oito e pouco da manhã e ela respondeu "Noite de sono ruim meu filho, demorei pra pegar no sono e ainda acordei com uma angústia… só Deus sabe o que de ruim está por vir… só Deus sabe!" Largou os pães no prato, agora já devidamente engraxados de margarina e foi abrir uma pequena janela para entrar melhor o ar da manhã.
Tomando seu café frio, e comendo o pão, lembrou de um dos poemas lidos na noite anterior, antes de dormir, e que não lhe saía da cabeça:
"Contrastes
A madrugada é fria
e chove tanto
que a água a bater no barro
parece pranto
de mulher parida
num mau parto
Ouço do meu quarto
o pisar forte dos trabalhadores
sobre o barro mole da estrada.
Vão pegar o trem das quatro
Mas eu levanto às sete
Toco na bomba
tomo café
leio
e vou ao armazém
Às dez
sigo pela estrada
vou pegar o trem
rumo ao trabalho
(E que trabalho
dirão meus irmãos trabalhadores)
Mas na praia do Flamengo
muita gente toma banho
e assim passa o dia...
SOLANO TRINDADE"
No último gole do café frio da manhã de domingo voltou a pensar no que sua mãe disse: "Mainha quando fala essas coisas, sempre acontece algo ruim, a coroa tem ligação com alguma coisa que tenta avisar ela, mas por algum motivo ela nunca sabe direito o quê e com quem vai acontecer, vai ver deve ser porque não se liga muito nisso de religião, acredita nas coisas mas não leva a sério! Porém, a fé e o nome de Deus não saem da boca dela!"
Terminou o café e pra esquecer esses pensamentos que já se direcionavam para algo negativo, voltou aos poemas de Solano Trindade:
"Olorum ÈKE
Olorum Ekê
Olorum Ekê
Eu sou poeta do povo
Olorum Ekê
A minha bandeira
É de cor de sangue
Olorum Ekê
Olorum Ekê
Da cor da revolução
Olorum Ekê
Meus avós foram escravos
Olorum Ekê
Olorum Ekê
Eu ainda escravo sou
Olorum Ekê
Olorum Ekê
Os meus filhos não serão
Olorum Ekê
Olorum Ekê"
Era domingo e no bar da esquina, em toda quebrada, sempre tem uma sinuca. O Poeta gostava de jogar sinuca com os amigos. Umas 10 e pouco resolveu parar a leitura e ir jogar um pouco. Pegou suas folhas de ofício com poemas, foi até o quarto. Guardou as folhas no guarda-roupa que divide com o irmão (o moleque acordou com o ranger da porta do guarda-roupa porque a porta do quarto é uma cortina de retalhos feitos a mão pela mãe deles) pegou as últimas moedas que sobraram do corre na feira e saiu. Antes seu irmão ainda sonolento disse "Bom dia, otário!" E ele respondeu: "Bom dia, idiota" Era uma forma de carinho entre eles. Sua Mainha estava sentada numa cadeira na sala estreita em frente a TV velha, mais perdida nos próprios pensamentos do que assistindo alguma coisa. "Mainha, vou jogar sinuca!" "Certo, se cuida, Deus acompanhe!" "Amém!"
No bar a mesa de sinuca estava ocupada, pediu a vez e comprou um cigarro, pegou uma cadeira e sentou na frente do estabelecimento pra fumar sem incomodar quem não fuma. Com o cigarro na metade, viu-se participando de uma cena de cinema, uma cena de ação e ele era um dos atores. Com o cigarro na metade, soprou um trago para o ar, e viu uma moto dobrar a esquina no final da rua e vir na direção do bar. Dois caras de capacete. Pressentiu que não era nada de bom, porque as viseiras estavam fechadas. Mas não se levantou, afinal, era só um moleque que gostava de fazer e ler poemas, não devia nada para ninguém. A moto reduziu a velocidade quando chegou perto e a ponto 40 cantou 4 vezes a canção de finados. Os tiros acertaram seu tórax como ferro quente, com a vista turva caiu da cadeira, pensando "Que poema violento esse fato daria!" e caiu da cadeira já sem consciência…
A moto saiu em fuga, uns amigos correram para socorrê-lo, outros já foram avisar sua Mainha. A camisa Azul, que estava vestido, tinha agora quatro manchas pretas, do sangue vermelho no tecido azul. E a hemorragia fazia as manchas aumentarem. A SAMU foi acionada, mas iria demorar, um vizinho que tinha um Kadett velho, se dispôs a levar o garoto para o hospital, ainda havia esperança, ainda estava vivo. E assim foi feito.
A mãe veio correndo, trouxe lágrimas escorrendo pelo rosto, gritos de desespero saindo pela boca e uma folha de "comigo ninguém pode" na mão. Colocou a folha no bolso esquerdo da velha bermuda jeans que ele usava. Jogaram no carro e partiram em disparada para o hospital.
Alguns dias depois voltou pra casa, quatro marcas de tiro, nenhuma bala alojada e a indignação de não saber por que diabos atiraram nele.
Quando chegou em casa não viu o irmão. Perguntou à mãe onde ele estava e as respostas vieram. "Seu irmão, mandei pra casa da vó em São Felipe, lá ele tá seguro!" "Seguro de quê? Ele fez o quê? Aquele maluco foi atrás dos caras foi?" "Não, ele se meteu numa briga de sábado pra domingo, com o cu cheio de cachaça e sei lá mais o quê, ele e aquele amigo dele (falei pra ele não andar com aquele menino) desceram a porrada num garoto lá que tem um axé com us menino lá de baixo, mandou matar ele e o amigo. No mesmo dia que atiraram em você mataram o amigo dele lá no campo de terra, umas 4 e pouco da tarde."
Eles eram irmãos, filhos do mesmo pai, assassinado a 10 anos e pouco, diferença de 11 meses e vinte dias de nascimento, muito parecidos, até quem via eles todo dia às vezes confundia. Matou a charada. E a Mainha continuou "Você também vai pra lá. Amanhã vou te levar e sua vó vai cuidar dos ferimentos!" "Mas eu não tenho nada a ver!" "Eh... mas agora tem marca de tiro, a polícia vai achar o quê? Vai morar lá na roça sim, já basta ter perdido seu pai, se eu perder um de vocês vou viver como?"
Depois disso o silêncio reinou e ele fez o que a Mainha mandou. Dezessete anos e quatro marcas de bala na pele, assim saiu de Santo Antônio e foi morar num povoadozinho de São Felipe com a vó!
Anos depois, além de ler e fazer poesia, passou a ouvir muito rap, voltou a morar com a mãe que se mudou do bairro. Já tinha muitas outras cicatrizes de "vida ou morte" além das quatro marcas de bala no tórax. Nessa época foi num evento chamado "Som da Rua" e ouviu uma música que ele mesmo poderia ter escrito:
"Poeta de aço fazendo versado no rastro deixado por quem tem visão
Nem tudo é amasso amores e palcos, ninguém vai ser limpo na poluição
Várias tentativas de me parar
com balas que vinham pra me abater
Até conseguiram me derrubar
Mas nem chegou perto de me deter"
Josias Andrade (Neuro Cage)
Sobre o Autor:
Neuro (Josias Andrade) tem 24 anos e é natural de São Felipe-BA. É escritor, poeta e mc. Envolvido com o movimento Hip-hop no Recôncavo baiano, além de várias faixas soltas também tem três Eps lançados e participação na antologia poética de 2018 da Cogito Editora. Mais um artista e arte educador da área 75, mais um filho do hip-hop 075.