EXU VIGIA
- Aganju Uh Anti Influencer
- 25 de fev. de 2021
- 8 min de leitura
Atualizado: 7 de jul. de 2021
O presente conto é uma ficção
Qualquer semelhança com a vida real
É mera coincidência

Sou órfão de pai e mãe. Não desses órfãos de filme de hollywood que ficam um tempo em orfanato e são adotados por família de burguês. Minha mãe foi lombrada em uma chacina, em um rolê que fez com alguns clientes que pagaram uma ponta a mais para ela sair do brega. Dizem que eram ladrões de banco de São Paulo malocados na Bahia, ao fim e ao cabo não se sabe ao certo o que aconteceu naquele motel na beira da BR 101 onde 6 pessoas foram assassinadas a tiro de grosso calibre. Só sei que minha mãe morreu nessa fita, aproximadamente dois anos depois que eu nasci. Meu pai era um pescador de Maragogipe, um cliente assíduo de minha mãe. Ele se apaixonou, quis tirar ela do oficio, no entanto, minha mãe gostava da liberdade que o trabalho proporcionava. Meu pai era corno e, como todo corno, era dramático; morreu fodido de cachaça, crack e de qualquer disgraça que proporcionasse lombra e tirasse sua dignidade.
Sem pai, muito menos mãe, fui criado em uma espécie de rodízio entre as mulheres que trabalhavam e gerenciavam os prostíbulos da chamada Rua do Brega em Cachoeira. Quando completei cinco anos Yansan revelou-se em toda sua generosidade em minha vida, quando Egbomi Nete me pegou “pra criar “. Egbomi Nete era uma senhora de Yansan, sua pele era extremamente negra e sua cor só rivalizava em negrume com seus cabelos que nunca embranqueceram. Ela não tinha filhos biológicos, no entanto, teve diversos filhos/as que pegou pra criar e, a todos iniciava nas doutrinas, mistérios e segredos dos candomblés antigos da terra vermelha, ou como dizem os mais velhos: da região do Bitedô. Ela nunca “botou camdomblé” como diz o povo, mas jogava búzios e foi mãe pequena de gerações de Ogans, Ekedes e Yaôs.
Como é de se imaginar Egbomi Nete fez meu santo e, como era de seu costume, sob regime rígido, com resguardo de um ano. Sou filho de Oxossi e Ogan de Yansan, tenho a fé crivada nos meus braços, são minhas curas, marcadas em minha pele através de pequenas escarificações no centro de minha cabeça, laterais dos braços, pernas, tórax e, até embaixo da língua. Essas cicatrizes são sofisticadas tecnologias de proteção e percepção intuitiva que sempre ardem quando o perigo esta próximo, como agora.
É “sexta-Cheira” em Cachoeira e o paredão groova no alto do morro do Cucuí de São Cosme na rua do antigo poço de Nanã. Por aqui o povo continua na rua e ninguém se importa com pandemia, muito menos com a polícia. Eu tô no corre de fazer dinheiro, então fico mais de parte, fumando uns baseados, dando uma ativada de leve, sarrando uma novinha aqui, outra ali e observando aquelas centenas de pessoas dançando sincronizadas, literalmente “metendo dança” ao ritmo da Dama do Pagode, O Poeta, O Metrô , além de muito Funk carioca .
Minhas curas continuam a arder, sobretudo, a que está no centro de minha cabeça. O perigo está próximo ou tão perto que já se misturou à multidão. Mas tipo assim, a favela é nossa, só os pivete brabo no controle do trem e tô na visão que esse final de semana tá tudo arregado, as puta não vão subir o morro pra oprimir o lazer. Mas ainda assim, não posso deixar de notar que minhas curas ardem à medida que a madrugada avança e os pinos de raio intocados em minha meia vão sendo despachados:
— Qual foi Mc, fala tu jogador!! Cê fica mais de parte em cêru, só no passinho da maloca. Tô na visão que cê lançou a braba no Youtube, compartilhei pra geral, pivete, sem ideia mermu. — Eh sim, pivete, de verdade. Gravei lá no Centro Comunitário. Tô com outras pedrada pra lançar, só visão de rua tá ligado. Mas aí qual foi? — É você que tá com esse raio batendo aí, é ? Tem pino de 50? Joga aí na minha mão na humildade. Mas tipo assim tô com 30 conto aqui, segunda-feira te dou os 20, sem ideia, brabo. — Já é parceru. Vou botar na tua mão por que tu é cara homi. Esses bagui num é meu, tou fortalecendo um parceru — Menti na cara dura — Segunda feira num vou nem te procurar, você chega em mim com essa mixa. — Eh noiz!! — Ele me cumprimenta antes de sair fora e nesse mesmo movimento pega o pino malocado na palma de minha mão. É o último pino e são 2:00 h da madrugada, o parceiro que me aborda na multidão já tá corizando em alta, mas quer mais lombra já que o paredão ainda groova alto e o fluxo está longe de acabar. Tem muita grana pra ganhar nessa pista, mas meu produto acabou, meu celular descarregou e não tenho como acionar meu contato na linha velha. Mas tenho um contato aqui perto, logo ali nas três bocas, dá pra ir andando mesmo, é rapidinho e, talvez a caminhada tire esses pensamentos ruins de minha mente, essa sensação de ardência constante em minhas curas, essa sensação que vai dar merda!
Saio swingando no meio da multidão ao som de — “Chaquala o rabo , senta prus pivete brabo! Chaquala o rabo, senta prus pivete brabo!” — Meu boné tá enterrado no meu cabelo trançado em nagô e minha prata tá brilhando reluzente, deixando meu Nike branco mais lindo ainda. Pra completar meu Kit tô com uma gola polo da Lacoste e por baixo da blusa uma peça presa na cintura. Pra quem é laranja não tem nem como perceber que tô armado, mas parece que esse oitão é ímã de xota, pois toda novinha que me cumprimenta, dá dois beijos no rosto e uma mão vai logo na cintura pra sentir a peça.
À medida que vou me afastando das centenas de pessoas que se amontoam na rua principal do alto do Cucuí de São Cosme, ali mermo próximo do poço de Nanã, observo os muitos carros e motos estacionados desordenadamente no meio fio da rua de paralelepípedo e postes de luz amarelada. O fluxo é intenso, pois é noite de São João e, mesmo que a prefeitura não fez festa por causa da pandemia, a cidade tá lotada de gente de fora que veio pro interior empestear a cidade com essa praga.
Já estou distante do paredão, mas ainda ouço a música ao longe. Agora estou subindo a ladeira íngreme do Cucuí de Caboclo. Estou pensativo, aliás, pensar é uma das coisas que mais faço, ao ponto que meu vulgo na maloca é Uh Pensador. Numa boa cêru pelo certo mermu, já travei muita guerra tola nas ruas dessa cidade de garoa e óleo. Perdi vários parceru, uns tão mortos, outros “desaparecidos” e uma tropa tá na tranca. Tenho sobrevivido a tudo isso e mais um pouco, em uma cidade que é conhecida internacionalmente pelo seu Patrimônio Histórico, a tal cidade heroica, Cidade heroica uma disgraça! É como Edson Gomes falou: “ O inferno é aqui” .
À medida que avanço madrugada adentro a temperatura diminui drasticamente e a neblina toma conta da cidade. Paro por alguns instantes no cume da ladeira próximo ao candomblé de pai Pedrinho e observo ao longe as silhuetas das antigas igrejas, irmandades e prédios de arquitetura barroca que compõem o dito centro histórico de Cachoeira. Assim como posso ver daqui do alto o Rio Paraguaçu serpenteando rumo ao Oceano, assim como os morros que cercam as cidades de Cachoeira e São Félix, formando uma espécie de vulcão onde a vegetação se mistura a um emaranhado de casas, a sua maioria sem reboco.
Além da neblina que toma as duas cidades há também um nevoeiro de medo nas ruas. Talvez a ardência em minhas curas seja isso: medo. O medo da morte prematura, de deitar na cova rasa. O medo de ser impedido de criar seu rebento, ou de nunca ter. O medo de não brincar com seus netos. O medo de nunca mais ver a pessoa que ama, de nunca mais sentir o cheiro dela ou de não sentir o peso de suas coxas sobre meu corpo. O Recôncavo é encharcado por sangue negro, uma terra hostil onde os negros são caçados, capturados e abatidos como cães. Cachoeira foi construída sobre muito sangue de gente preta escravizada. Egbomi Nete me dizia que Cachoeira e São Félix tão amaldiçoadas, porque os antigos cultos ancestrais estão sendo abandonados ou degenerados por “marmotagens”, como ela gostava de falar. Minha Vó contava que um dia a barragem vai romper novamente e matar todo mundo que não cultua ancestral.
Sigo cumprindo todos os preceitos e obrigações religiosas que minha Vó Egbomi Nete nos ensinou. Jamais vou abandonar Orixá, não quero ser um amaldiçoado. Não quero ficar no vazio eterno quando fizer a passagem pro Orun, meus ancestrais vão me receber de braços abertos e em algum momento retornarei pro Aiyê na forma de espírito, energia, sentimento e vida.
-Qual foi Mc, tá pensando em mim é? — Uma voz feminina forte rompe o nevoeiro — Meus pensamentos, sensações e intuições sobre Cachoeira são dissipados. Agora toda minha atenção está em Bruna, a Iaô de Oxum, que estava na janela do primeiro andar de sua casa me observando enquanto descia as escadarias rumo às três boca.
-Que pensando em você o quê, ta viajando é cêra? Tava castelando a Neblina, pensan… — Ela me interrompe.
- Já sei que você é Uh Pensador, Bêbê, mas para de pensar um pouco, sai desse frio e vem pra cá. A chave tá no mesmo lugar que você já sabe.
-Tenho uns corre pra fazer
-Aff, vida, sobe aí
…
São 8h da manhã de sábado e por alguns segundos não sei exatamente onde estou, mas o peso das coxas tatuadas de Bruna sobre meu corpo me fazem recordar tipo um looping das últimas horas: bebe água, bola outro, taca fogo, “preto, me chupa dinovo”. Estamos nus sobre a cama box, roupas espalhadas pelo chão, minha peça está em cima da penteadeira de jacarandá que ela herdou da Mãe e, o Sol, que entra pela varanda do quarto, faz a pele preta tatuada de Bruna reluzir, além de acentuar o contorno das curas nos seus braços. Ela é Iaô, apesar de ser mais velha do que eu em idade, é bem mais nova no santo. Minhas curas não ardem mais e já não tenho pensamentos tão profundos, quero apenas me refrescar nesse imenso rio que é Bruna.
-Hey pensador, vai gravar essa não? — Bruna mais uma vez me tira de meu castelo e me entrega uma folha de caderno amassada — Caiu do seu bolso. E é obvio que li. Você tem talento e com certeza não tá sozinho quando escreve suas músicas — ela continua falando enquanto eu leio a letra e tento me recordar em que momento das últimas horas escrevi esses versos:

-Posfácio -
— Boletim Diário Informativo Cultural Pititinga —
Segundo informações, três jovens foram executados a tiros na madrugada de hoje, durante uma festa de paredão que ocorreu na comunidade do Alto do Cucuí, mais especificamente nas imediações da chamada lagoa de Nanã. Segundo informações de populares, os disparos foram deflagrados por homens encapuzados fortemente armados, que saíram de um carro Gol. Até o momento a polícia não se pronunciou sobre o ocorrido.
ILUSTRAÇÃO: Leo Pessoa (@pessoa.rc)
Sobre o Autor:

Aganju Uh Anti Influencer (@aganju_dref), nascido em Livramento de Nossa Senhora-Ba e radicado a mais de 10 anos em Cachoeira-Ba, onde desde o ano de 2011 contribui na articulação de Cineclubes comunitários e na disseminação da Cultura Hip Hop nas periferias urbanas da cidade. Atualmente Aganju é um dos impulsionadores do Comitê de Solidariedade Popular Covid-19 — Cachoeira-Ba, instância organizativa comunitária articulada pelo Cine do Povo, com o propósito de efetivar estratégias comunitárias autônomas de enfrentamento aos efeitos virais e econômico e sociais do novo Corona vírus, nas periferias urbanas e rurais da cidade de Cachoeira-Ba. Aganju é homem preto, pai, professor de história, pesquisador, bibliófago, educador comunitário, escritor, beatmaker e Mc do grupo de Rap Us Pior da Turma.
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