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CONTAS

  • Foto do escritor: NEURO CAGE
    NEURO CAGE
  • 18 de jul. de 2021
  • 10 min de leitura


O Poeta é um desses jovens confusos sobre muita coisa, mas certo de que a arte é a inutilidade mais útil para libertação da juventude, em especial, e desesperadamente precisada, a juventude negra. O Poeta é um desses meninos negros que escrevia poemas na época da escola e tinha vergonha porque no fundo de suas inseguranças mais perversas estava a certeza absoluta de não ter aptidão para a literatura e de que “poesia é coisa de menina”. Afinal, até concluir o ensino médio, a escola, essa instituição projetada para fazer crianças negras fracassarem em seus projetos intelectuais e tornarem-se a mão de obra, os defuntos e os presidiários da democracia sub-humanizada do país, não ofereceu nenhum exemplo de Lima Barreto, Maria Firmina dos Reis, Solano Trindade, Carolina Maria de Jesus etc. Nada de negro sob o sol da instituição escolar do país mais negro fora da África.


Desde os 12 anos mescla a sobrevivência (conscientemente) com os estudos, sempre colocando em primeiro plano a sobrevivência, porque quem não está vivo não estuda, não trabalha, não faz poesia e por ai vai… Desde os 12 anos corre, pra comprar a primeira bicicleta, as próprias roupas, o próprio material escolar; desde os 15 anos corre para ajudar na conta de água, conta de luz, ajudar na feira, desde sempre corre para pagar contas que o Brasil, Pai eurocêntrico e explorador dos próprios filhos abandonados, finge que não é dele e segue na busca económica de ser uma “POTÊNCIA MUNDIAL.” Nada mais nada menos que a sanguinolenta sede de poder e opressão de meia dúzia de "arianos" filhos dos escravistas, netos dos colonizadores, pai dos playboys.


Mas antes que esse conto vire uma dissertação raivosa sobre os sofrimentos passados por um artista que eu admiro muito, vou deixar que ele mesmo conte o conto em questão.


...


Sempre acreditei que alguma força espiritual me guia e me guarda, como um sexto sentido prevendo ataques, aliviando dores e indicando caminhos, evitando combates prejudiciais que não poderão ser vencidos, ou que custariam minha única e sagrada vida. Porém, desde pequeno convivendo e vendo como o mundo é um campo de guerra injusto para nós negros, como tudo de bom que se fala de Deus não habita as práticas da vivências de muitos que falam em seu nome, só conseguia pensar na espiritualidade como um lugar de abandono. Deus nos abandonou! Não faço o tipo que vai em igreja, templo, terreiro, coisas desse tipo, ou pelo menos não fazia até um tempo atrás… hoje acho que caminho para um reencontro com o plano ancestral da minha alma. Coisas ruins acontecem pra nos afastar disso e coisas ruins também acontecem pra nos aproximar disso… Não sou mais do que mais um sábio por saber que "a gente nasce sem saber de nada, vive aprendendo, morre e não sabe de tudo" como dizia minha vó.


Sou o típico cara correria, nunca estou parado, planejo muito meus passos, meus atos e o que quero pro futuro, gosto de conversar com os mais velhos e gosto de conversar com as crianças, gosto de ir no rolê sossegado e no arriscado. Eu não paro porque no Brasil do recôncavo baiano “pra preto todo dia é dia de batalha.” O lazer faz parte da batalha, é preciso ter estratégia de sobrevivência até pra se divertir um pouco. Num desses dias de batalha eu fui visitar um azuado, envolvidão com tudo de ilícito que é permitido e apresentado a um jovem negro sem nenhuma perspectiva de vitória legal, nesse país onde dizer que sangue negro edifica a economia não é só uma licença poética. Eles, literalmente, negociam nossos corpos em gabinetes, enquanto corremos nas ruas, roças e favelas para pagar as “Contas” e sobreviver mais um dia. Essa terra carrega uma sede de vingança que nunca foi feita, essa mesma sede secular sussurra caminhos demorados e distópicos para que a vingança seja feita.


Em Amargosa o que mais tem é polícia. Moro aqui a um bom tempo, vindo por motivos que não vem ao caso, e tendo aqui um governo petista, era de se esperar que o governador do estado, um demagogo que veste de segurança pública o bem sucedido projeto de genocídio do povo negro, botasse mais viaturas nas ruas do que verba no setor cultural e educacional da cidade.


Eu morava no Ródão, o pivete lá na “Gamboa de Baixo.” Apertei um fino, em casa mesmo pra não sair com flagrante, e mandei mensagem avisando que ia chegar lá com uma cerveja. Era noite de sexta-feira, tudo muito movimentado, a galera da universidade deveria, com toda certeza, estar no Bosque enchendo o cu de cachaça e outras drogas. Quando terminei de fumar o baseado, o pivete respondeu:


- As puta tá aqui na rua, invadiu a casa do parceiro, espera aí, quando tiver de boa pra tu encostar eu te aviso.


Hoje eu não iria lá, mas naquele dia eu só pensei que era bom passar no Bosque antes pra comprar cigarro e ver se trombava alguém pra passar o tempo até ele me mandar mensagem. Assim eu fiz. Perto da rodoviária encontrei o Professor, estava indo pra casa de uma mina lá do bairro, montado na bicicleta rosa dele, parou pra me falar sobre o movimento no Bosque. O Professor é um preto favelado, que sabe-se lá como, encontrou motivação para fazer um curso superior, não está rico, mas tem quase 30 anos. Ele foi e ainda é uma espécie de guia de sobrevivência pra mim desde que cheguei em Amargosa, por motivos que não vem ao caso.


- Fala tu, poeta!


- iai Pivete, tá indo ver a preta com cabelo que parece o da "Angela Davis " é?

- É sim… Tô vindo do bosque, tava tomando umas lá desde de tarde, me mandaram mensagem pedindo visita especial, eu tô indo lá… ( e rio largamente…)

- É sim, prazer também é sobrevivência, e aquela piveta é pra frente nas ideia, dá pra transar e filosofar, ou falar de poesia logo depois. Nunca peguei, nem tentei, mas pelas ideia que troquei, ela né de bobeira não...


Ele consentiu com a cabeça e eu observei que usava um turbante novo, o pivete tava bonitão, mas nem falei nada sobre isso. Como é que tá o Bosque? (Perguntei rompendo o curto silêncio.)

- Tá massa, fora a polícia pesando o clima, mas os pivete tá lá, em atividade, mesmo assim. Se tiver flagrante aí fica ligado…

- Tá na mente! (dei risada de chapado mesmo!)

-Porra... nem te falei do meu irmão né?

- Não! O que foi que rolou? Aquele pivete é mil grau.

- Foi pra Salvador, tá malocado por lá. Mainha me mandou mensagem falando sobre isso hoje de tarde. Parece que se envolveu numa briga domingo, de noite e o cara ameaçou matar ele, mas nem foi por isso que ele teve que se sair…

- E foi por que?

- A polícia tá descendo lá na roça, com a foto dele e perguntando ao povo na estrada se alguém conhece e se sabe onde mora. Ninguém disse nada, mas avisaram a mainha, que quase teve um treco. Meteu ele as carreiras dentro do buzu e mandou pra Salvador até vê o que tá rolando e a poeira baixar.

- Porra, oh que barriu…

- Sei nem o que ele tá aprontando, mas também não posso fazer nada. Fico só pensando que minha família, mesmo longe, ainda é motivo pra me manter focado e na linha, se acontece alguma coisa com o meu irmão, minha mãe morre e eu não sei o que vai ser de mim não. Mas deixa esse assunto baixo, vou encostar no bosque pra esquecer dos problemas tomando cerveja e olhando bunda rebolando (e dei risada de chapadão de novo)

- Eu vou chegar ali no meu destino, depois a gente se fala…


Cheguei no bosque quase às nove da noite. Encostei num dos bares, pedi uma cerveja, acendi um cigarro, sentei na mesa e passei o olho no ambiente. O som alto tocando A Dama do Pagode, as pivetas da favela e da Universidade sincronizadas rebolando a raba, os maloqueiros pelos cantos, na surdina, desenrolando o corre e, como não podia faltar, uma viatura desfilando pra lá e pra cá a distância observando tudo. Pensei comigo mesmo “Não vai demorar alguém tomar um enquadro aqui!”


Terminei a primeira cerveja e nada do pivete me responder. Continuei sozinho na mesa, apesar de vários conhecidos que chegaram, deram um salve e foram curtir a putaria santa de toda sexta-feira. Já tinha fumado o terceiro cigarro, um no rabo do outro, quando vi chegando uma preta que eu me envolvia. Ela sempre botou em uns rolês massa e era só ela tomar umas cervejas que vinha cegazinha me procurar ( não bebia sozinha não, bote fé), mas naquele dia eu tinha outros planos e assim que o pivete me respondesse eu ia me sair, então seria ela no rolê dela e eu no meu.


Quase 10 e meia da noite, meu celular vibrou no bolso. Tirei o olho dela, que ainda não tinha me visto e já tinha pedido a segunda cerveja, e levei a mão pra pegar o celular. Quando puxei o celular do bolso, era a notificação do pivete, antes de eu desbloquear o aparelho, a preta sentou na mesa. Sem “Boa noite?" sem “Como vai?” e soltou essa:


- Eu acho que você não devia ir pra onde tá pensando em ir, lá em casa vai ser muito melhor depois daqui.


Não sei o que rolou, mas aquilo me soou como um aviso e não como um convite. A espinha gelou por uma fração de segundos e o arrepio foi inevitável. Aquilo entrou pelos meus ouvidos como um poema de Solano Trindade numa madrugada solitária. Eu não tinha percebido, mas alguém trocou o pagode pelo rap de Criolo “convoque seu buda o clima tá tenso.” Eu olhei aquela jovem mulher negra, dentro dos olhos grandes e bem maquiados dela e guardei o celular, como se eu tivesse hipnotizado. Quando voltei a mim, já estava tocando pagode de novo e eu disse:


- Primeiramente, Boa noite, Malena! Mal educada! Nós dois rimos discretamente do sarcasmo e ela continuou…

- Boa noite, Poeta! E é sério! Fica ali com a gente e depois você vai lá pra casa comigo. --- "Depois" pode ser até amanhã, como eu vou mudar meus planos sem saber quando vai ser esse “depois”?

- Você tem sempre uma boa resposta na ponta língua, né?

- E você não, né? Falei pra ela que ia pagar as duas cervejas que eu já tinha bebido, pagar os cigarros, passar no banheiro pra soltar um mijão e depois colava lá no bonde dela. Isso mesmo eu fiz. Quando sai do banheiro e fui em direção a onde ela estava, OW merda!... tinha um bonde de cara pra parede do bar. ENQUADRO. E eu não ia ficar de fora, afinal a PM baiana adora alisar e espancar um negão de 1,80 de altura.

- Você! (Era comigo) Mão na cabeça, encosta também! Bora desgraça, adianta! Quatro policiais da PETO, tentando achar um motivo pra acabar com a festa de algum pretinho numa sexta à noite no meio do bosque de Amargosa. Do meu lado tinha um pivete que é MC, produtor musical, pivete cabeludão, outro correria que nem eu. Esperando minha vez de ter, pernas, braços, tórax, bunda e ovos apalpados pelos caras mais machos do Brasil, ouvi o pivete ser perguntado:


- Cadê a droga, vagabundo?


Ele podia dizer “Eu não sou vagabundo e não tenho droga nenhuma!" Ou “A droga tá na biqueira, vai lá buscar!” Mas malandro sabe que com um, dois metros atrás de você empunhando um fuzil apontado pro chão, outro com uma submetralhadora bem a sua direita e o terceiro de pistola na mão acompanhando a revista e conferindo os documentos, falar qualquer coisa além de “sim” e “não” pode ser sentença de morte sumária. Então ele só respondeu:


- Tem droga nenhuma não senhor! Quando começaram a me revistar, o bendito fuzil, disparou pro chão. Eu estava de costas, achei que tinha disparado para cima. Gelei mais do que picolé cinco meses no freezer, mas fingi que tava de boas, não foi em mim, já tava bom... Ouvi o portador do fuzil comentar baixinho pra um dos colegas:


- Disparou sozinho de novo! Depois de quase um inocente ter morrido, por causa de arma defeituosa da polícia militar (Já pensou se aquela porra tá apontada pra cabeça de alguém igual a pistola estava? Ia ser mais um caso isolado que ninguém é punido.) Malena deu a louca pra ir embora logo e eu sem clima pra ficar apoiei e fui pra casa dela.


Cheguei na casa da piveta, eram quase 11 e meia, talvez meia noite. Meu celular já tinha descarregado e na época eu tinha um relógio que não funcionava, era só pra “tirar uma braba” como dizem os parceiros. Levamos cerveja, a piveta tinha um chá naturalmente tranquilizante e o que rolou até às duas da madrugada é o mais óbvio, bebemos, fumamos e transamos. Além de conversar sobre essas coisas de feminismo preto, preto machista e toda essa problemática que no fim só bota mais culpa na gente e a gente um contra o outro, os racistas ficam de boas e bem felizes de ver a gente se apontando e se condenando, como passarinhos presos na gaiola, brigando ao invés de pensar em como vão abrir a porteirinha.


Duas horas da manhã, ela pegou o celular IPHONE sei lá quanto e foi olhar as famigeradas redes sociais. E lá no facebook, um dos jornais online mais sensacionalistas do Recôncavo, que inclusive carrega o nome de sua cidade de origem (Amargosa), divulgou a manchete:


“Traficante é morto em confronto com a polícia, no Bairro São Roque em Amargosa.”

E assim se iniciava a matéria: “Agora a pouco, por volta das 00:00 hs, uma operação conjunta da polícia militar….”


E lá estava a foto do parceiro. 22 anos, crivado de balas na sala da própria casa, e eu via isso pela tela de um IPHONE, barca. Celular inovador não inova nada, se a juventude ainda enfrenta o velho problema: Drogas e fardas, drogas e armas, drogas e balas, morrendo pra encher o cofre do sistema e a desculpa mais parece piada.


Falei pra Malena:

- Eu ia ver esse pivete hoje!

- Agora ia ter dois nessa foto!

- Agradeço a quem me guarda, mas meu pivete não merecia um fim desse não.


...


Bom... foi por isso que eu deixei ele mesmo contar o conto. Se fosse eu contando uma história dessa, o nível de raiva e ódio acumulado por esse sistema miserável, não me permitiria escrever menos do que um romance das carnificinas do dia a dia. Eu admiro o Poeta porque, mesmo com todas essas pirambeiras que ele é obrigado a descer capotando, ele não para de ser Poeta.


Neuro Cage…

(Josias Andrade)





Sobre o Autor:

Neuro (Josias Andrade) tem 24 anos e é natural de São Felipe-BA. É escritor, poeta e mc. Envolvido com o movimento Hip-hop no Recôncavo baiano, além de várias faixas soltas também tem três Eps lançados e participação na antologia poética de 2018 da Cogito Editora. Mais um artista e arte educador da área 75, mais um filho do hip-hop 075.



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