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APENAS MAIS UMA CRISE DE ANSIEDADE

  • Foto do escritor: Mari Ferreira
    Mari Ferreira
  • 6 de dez. de 2021
  • 9 min de leitura



Dona Celina bebe paporra e fuma pacaia, é uma coroa sossegada, era crente, mas agora a igreja dela é o sindicato dos bebo, é a mãe de Lorrayne, Bruno e Ruan, os filhos morrem de vergonha de ter que buscar ela caída na rua, mas respeitam ela porque a véia mata e morre por eles. Ela morava com um véinho da roça, eles bebiam juntos e discutiam muito, uma vez ele bateu nela e tava tentando pegar Lorrayne à força, ela pegou uma faca de serra e cravou no pescoço dele, mais 2 cm pro lado ele teria morrido na hora, ia entalar no próprio sangue.


Ela é de boa, mas não come reggae quando tá grogue de cachaça. Dona Celina é minha madrinha, vivia lá em casa, mas andou sumindo dinheiro por lá, mainha desconfiou dela e elas brigaram feio, só faltou sair no tapa pelo meio da rua. Depois disso nunca mais a amizade delas foi a mesma, eu acho que mainha sente muita falta dela, mas é orgulhosa demais pra ir pedir desculpas, também acho que Dona Celina sente falta de mainha,

mas ela ficou muito ofendida depois que mainha levantou esse falso contra ela, mexeu com a honestidade da coroa, desacreditou da lealdade dela, mainha se passou nessa história toda, eu acho é que ela não contou esse dinheiro direito e já saiu julgando.


Eu tenho muita pena de Dona Celina, mainha disse que ela ficou assim depois que a polícia matou Ruan na frente dela, geral sabe que mataram ele em troca de nada, o pivete só cheirava pó. Rolou uns roubos na roça, a PM precisava mostrar trabalho, mataram ele pra incriminar alguém e matar a cede de justiça do povo, o mais engraçado é que matam qualquer negão e o povo realmente aqueta, não precisa nem investigar. Amarraram ele e afogavam num balde no quintal pra ele dar o canal de quem faz os corres, pivete era pelo certo, não entregou ninguém, enquanto isso Dona Celina tentava tirar ele das mãos das puta, as disgraças lascaram um tapão na cara dela e estouraram a cabeça dele com uma pistola.


Antes de jogarem no fundo da viatura pra fingir que prestavam socorro eu consegui contar uns tiros: um na nuca, dois no olho direito, 3 no peito e 1 na perna, como de costume alegaram conflito e ficou por isso mermo, ninguém nem conseguiu olhar o corpo de tão pipocado que ficou. Os gritos de Dona Celina rodam na minha cabeça acompanhadas das cenas do banho de sangue que ficou a casa, tinha sangue até na tela da televisão, o que fizeram com o rosto do meu pacero… Tava todo fudido de bala, sem vida, sem sorriso, lambuzado no seu próprio sangue. Não aguento mais me esconder pra chorar essa fita. O pivete era sossego, dava um raio, mas nunca fez nada pra prejudicar ninguém.


Comecei a fumar maconha com ele, a gente era Guri, tinha uns 14 anos, subia pra bater o baba na quadra e depois ficava lá conversando com uns parcero que fumava das antiga, aí já sabe, né? E quando mainha e Dona Celina descobriram? Aiai, elas tavam voltando do trabalho, Angélia (bicha fofoqueira da disgraça) disse pra elas que viu a gente fumando na quadra, Ruan tomou uma surra de cinto, eu tomei uma surra de Tiririca e Cansanção, depois ainda tomei banho de água com sal, mainha nunca me bateu tanto quanto me bateu naquele dia, dava pra ver a raiva e decepção nos olhos dela. Parecia um bicho me batendo e gritando, precisou minha tia apartar, ela ia me moer na porrada, ela sempre disse que não me criou pra virar vagabundo, que filho dela não ia dar pra ruim. Fiquei todo lapiado e ela fazia questão de dizer pra todo mundo que “bateu porquê fi dela não era maconheiro não”.


Depois que Ruan morreu a vida ficou sem graça, eu fiquei sem meu pacero. Hoje de manhã tava me arrumando pra resolver umas coisas, fui pegar o sapato e vi o Mizzuno que compramos juntos, lembrei logo dele, na verdade lembro todo dia, não dá pra esquecer. Conseguimos um trampo lá na borracharia, durante a semana tinha esse bico na borracharia que interava o dinheiro da feira e sábado a gente descia 4:30 da manhã pra ajudar a montar as barracas e carregar feira, foi nessa mixa da feira que a gente foi juntando pra lançar nosso primeiro MIZZUNO, a promessa era que depois desse ia vim pelo menos mais uns 4, mas ele morreu antes que o primeiro ficasse velho.


Não tenho tempo de entrar em depressão, tlgd? Queria passar o dia todo deitado na minha cama remoendo essas memórias como uma forma de deixar ele mais vivo na minha mente, mas se eu não sair pra rua, não tem almoço. Queria muito esquecer essas neurose, mas essa disgraça tá impregnada na minha mente.


E ver Dona Celina se acabando toda na cachaça é como se ela estivesse sendo torturada, nós somos os sobreviventes com a mente fudida enchendo o rabo de cachaça, maconha e cocaína pra tentar dispersar a realidade, mas a lombra passa e a gente acorda todo dia sem vontade de viver. Não aguento mais tanto ódio preso dentro de mim, sinto o peso dos paceros mortos nos meus ombros e mesmo assim eu me levanto, cheão de ódio, mas me levanto.


Antes eu descia a ladeira e ia trampar descarregando caminhão de cacau nos armazéns do centro, meio dia chegava em casa pra ajeitar um rango e comia agoniado assistindo Bocão deitando e rolando em cima dos corpos de mais uns neguinhos que tombaram nessa guerra. Sentia muita dor nas costas, trabalhava igual bicho, aliás, bicho não, tem bicho mais bem tratado. Eu era um disgraçado sem perspectiva que carregava sacas de 60kg na cabeça, agora eu sou um desgraçado sem perspectiva brincando de enganar a morte aqui mermo na área.


Eu nem me sinto mais humano, meu corpo aguenta tudo que você imagina e o que nem consegue imaginar, me sinto sempre vigiado, olhos de drones me observam em todas as dimensões, tem horas que a cidade se derrete em minha frente, as pessoas parecem aberrações tentando consumir a minha carne, mas ao mesmo tempo sou eu quem sou temível, a aberração sou eu, quem causa medo sou eu. Tô cansado disso tudo, ninguém olha mais nos meus olhos. Hoje acordei virado, de ressaca e cheio de lombra, nem sei se acordei ou se esse é mais um dos meus pesadelos vivos. Tem noites que meu corpo treme, minha respiração me sufoca, mas é isso, seguro minha onda, às vezes consigo chorar, no outro dia lavo meu rosto e eh palá que vai, tô viveno de novo como se eu fosse tão forte quanto aparento.


Dá vontade de largar essa merda toda, mas mainha só tem eu por ela, meu pai foi trabalhar num restaurante Japonês em SP e nunca voltou, ninguém sabe nem se tá vivo. E tem minha filha também, minha neguinha não pode ficar sem pai, maiores, viu? Eu fico com pena e me sinto culpado por ter botado mais uma pretinha nesse mundo de meu Deus, mas a minha pivetinha não vai passar em falta de nada não, enquanto eu tiver vivo eu tô trabalhando por elas, minha mãe e minha filha são minhas responsabilidades.


Quando eu era pequeno ficava pensando como seria minha família, tinha medo de ter que ir trabalhar em SP como meu pai e de lá sumir no mundo. Ficava sonhando em ter 1 menino e 1 menina com Carol, ter uma casa massa, aconchegante, espaçosa, com o armário e a geladeira, ter computador, celular, TV grande, ter um PS pra mim e um pras crianças, 1 quarto pra cada filho e ter nossa suíte master, tipo aquelas de motel com espelho no teto e tudo. Quando comecei a namorar com Carol passei a dividir esses sonhos com ela, passava o dia cheio de odião trampando de ajudante de pedreiro debaixo do Sol quente batendo massa, e de noite passava com ela deitada nos meus braços, falando dessas metas, dos meus sonhos e das coisas que eu tinha medo quando era criança.


Carol é tão inteligente, tão linda, tão dedicada, ainda bem que Isabelle herdou tudo isso daí da mãe, nossa filha parece uma cópia dela, de mim só herdou a teimosia. Sinto muita falta disso, do cheiro, do cuidado, de falar sobre meus sonhos com alguém, eu me sentia o homem mais forte, mais querido do mundo, mas destruí isso daí também.


A gente tinha acabado de conseguir alugar um quartinho quando a Carol começou a desconfiar que tava grávida, fez o teste e foi isso mermo, Isabelle já tava lá, malocadinha, 2 meses e meio de gestação. Eu fiquei feliz paporra, mas não foi assim que a gente tinha planejado e pra acabar de piorar a gravidez era de risco. Não sei como que é bem isso, mas o que eu sei é que tem uns 11 anos que ela toma anticoncepcional , aí o útero dela é todo coisado, não é o melhor pra gerar um neném. Carol teve que ficar de repouso, saiu do trabalho dela, as contas foram se acumulando, já não dava pra pagar o aluguel e a gente ainda não tinha nada do enxoval de Isabelle, aí ela voltou pra casa da mãe dela e eu voltei pra casa de mainha, mal dava pra gente se ver, eu tive que pegar uns trampos até no final de semana e mesmo assim não tinha dinheiro pra ter um cantinho só nosso.


Eu tava mais ausente, Carol tava mais nervosa, preocupada como ia ficar nossa vida tendo uma filha. A gente brigou muito, tava cansado de brigar com ela, quando a gente brigava eu me sentia a pior pessoa do mundo, me sentia incapaz, insuficiente, sentia meus sonhos se desfazendo nas minhas mãos. Aquilo era tudo que eu sonhei, minha mulher, minha filha, mas veio no momento errado, eu era muito moleque ainda, muito inconsequente ainda, vim ficar sujeito homem depois que minha filha nasceu, mas já era tarde demais, Carol já não me amava e não dava tempo de refazer os planos. Eu não fui a segurança que ela precisou quando tava grávida, minha mente é um amontoado de frustrações, não é seguro nem pra mim, quem dirá ser seguro pra formar uma família, criar crianças, sustentar uma casa, proteger minha mulher.


A primeira vez que vi minha filha me senti o cara mais abençoado do mundo, ela tava ali, brabona, geral dizia que ela não ia vingar, que o útero de Carol tava pistiado de anticoncepcional, mas Isabelle tava lá, nasceu grandona, nem parecia que era recém nascida, peguei ela no colo e ela era tão sensível, tão fofinha. Lembro de ter medo de não conseguir ver ela crescer, ou pior, não dar condições pra ela crescer bem, essa crise ficou na minha mente, até chorei pensando o que ia ser da gente vivendo no meio de tanto problema.


Carol me ensinou amar, eu amava e era amado pra caralho, ainda lembro dos olhos dela brilhando no ano novo que a gente passou na praia de Guaibim, da felicidade de estar no mar, com ela, comendo farofa de calabresa e bebendo Itaipava. Carol também me ensinou como o amor pode destruir, como é corrosivo escutar xingamentos de quem você ama. Ela também me ensinou como acumular raiva, ciúmes, tristeza e melancolia.


Quando a gente tava na rua ela sempre lembrava de ver a Lua, fazia questão de apontar todas as vezes, tenho saudades de ter alguém que me lembre de ver a Lua. Todas as vezes que brigamos falamos muita coisa que magoava, que doía, mas também sei que era pela situação, pela forma que tava nossa cabeça no momento, ela estava carregando uma gravidez não-desejada, não-planejada, cheia de problema de saúde, sem dinheiro nem pra fazer uma ultrassom, sem dinheiro nem pra um carro levar pra fazer o pré-natal, foi barril pra ela, e pra mim também. Eu sei que nada vai voltar a ser como antes que depois de tudo isso, não dá mais. Queria recalcular os planos, voltar com ela, ganhar um cafuné no disfarce, acordar e ver ela passando o café, me arrumar e sair de mãos dadas com ela pra ir comer um pastel na praça. Pra ela eu não sou nada além do “vagabundo do pai de Isabelle que paga 200 reais de pensão e se acha o melhor pai do mundo”


Ruan ia achar graça de tudo isso, ele nunca botou fé que Carol daria ousadia pra mim, quando a gente era criança, ela era crente, a vó dela, Dona Detinha era crente da Assembléia e arrastava ela junto pra igreja, Ruan me matava na resenha dizendo que seu quisesse namorar com ela eu teria que entrar pra lei de crente, se ele tivesse vivo seria o padrinho de Isabelle, na verdade pra mim ele é o padrinho de minha filha, Carol deu a menina pra ser batizada pelos patrões dela, nada a ver a menina ser batizada por uma família que explora a mãe dela, bota pra criar os filhos deles das 7 da manhã às 6 da noite pra ganhar uma mixaria de 500 reais, enquanto Isabelle fica na casa da vó sem o pai e sem a mãe dela pra criá-la.


Carol me acha um pai ruim porque nunca conheceu meu pai, eu pelo menos tô perto, me importo, na medida do possível não deixo minha filha passar em falta de nada. A mãe de Carol vive falando mal de mim pra Isabelle, ela acha que eu não sei, aquela velha nunca gostou de mim, ela achando bom ou ruim é meu dinheiro que ajuda na feira da casa dela, ela não tem opinar nada, se é certo ou se é errado quem decide sou eu, o importante é que o dinheiro entra, se eu tô em risco ou não o problema é meu, em risco eu sempre tive, Ruan não tava em risco e morreu dentro de casa, tudo pode acontecer, o meu destino é esse, não tem pra onde correr, não dá pra criar uma filha ganhando 20 reias por descarregar um caminhão de sacas de cacau, boa ou ruim essa é minha vida, só Deus pode me julgar.




Sobre a autora:



Mari Ferreira, poeta autora do Livro DAREN (2021, Editora Tremembé). Co-fundadora e membro do Coletivo Us7monstrinhos, coordenadora da Biblioteca Comunitária D. Edite Rodrigues. Podcaster e editora do AKANNI podcast. Coordenadora criativa do UNDERGRAUH. Articuladora cultural e artista. Pesquisadora sobre Cultura/Movimento Hip-Hop e Masculinidades Negras. https://linktr.ee/pretamari


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2 Comments


Samuel
Samuel
Jan 14, 2022

Nunca canso de ler esse texto... Mari pcra, você broca demais!!! Obrigado por isso!

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Sávio Oliver
Sávio Oliver
Dec 07, 2021

Vei... que texto foda, namoral

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